sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PARTE 1 - A mulher da estrada


Quando a luz se apaga, é que ele enxerga tudo aquilo que não pode ver. Quando seus olhos se fecham, é que ele sente tudo aquilo que não quer sentir. Quando ele pensa que acabou, então tudo começa outra vez. O filme que está em cartaz na sua mente, é o mesmo de ontem, desde sempre...
Uma estrada vazia, cortando o deserto frio em plena madrugada. A lua cheia ilumina e faz companhia na viagem, que está apenas no início. Ninguém cruzou seu caminho nas últimas três horas. A música no toca-fitas e o café morno, mantém seus olhos abertos e o carro na pista. Um Mustang 69 Coupe. Sozinho, ele canta:

"Words are flowing out like endless rain into a paper cup,
They slither while they pass they slip away across the universe.
Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my opened mind,
Possessing and caressing me..."

- "John estava certo." - pensou ele.
De repente, ele enxergou alguém parado à beira da estrada, logo à frente. Diminuiu a velocidade. Era uma mulher. Magra, alta, cabelos castanhos. Ela fez sinal com a mão, pedia ajuda.
- Como alguém veio parar sozinha a essa hora no meio dessa estrada deserta? - disse para si mesmo.
Passou por ela, agora ainda mais devagar e tentou ver seu rosto, mas a luz da lua não refletia o necessário para que pudesse enxergar claramente. Pensou duas, três vezes enquanto passava olhando para aquela mulher que ali estava. Olhou pelo retrovisor, fechou os olhos e pisou no freio. Ela veio correndo em direção ao carro, abriu a porta e se atirou para dentro, dando um forte e desesperado abraço naquele que nunca vira. Silêncio. Ele olhou para seu rosto, Ela estava ofegante. Seus olhos castanhos, seus lábios grossos, carnudos, ensanguentados, seu rosto sujo, de poeira e de sangue, sua calça jeans suja, rasgada, seu cutuvelo ralado. Tudo isso fazia dela a mulher mais linda que já tinha visto por todas as estradas por que passou. Ela sorria e chorava ao mesmo tempo, agradecendo àquele homem por tê-la tirado daquele deserto frio e escuro.
- Qual o seu nome, como você veio parar aqui? - perguntou ele.
- Eu não sei, e o seu? - ela respondeu.
- Meu nome é Miguel.
Ela baixou a cabeça, tomou fôlego. Seus lábios começaram a tremer. Ele esperou que ela se recomposse. Então ela olhou em seus olhos e disse:
- Eu não lembro como vim parar no meio dessa estrada deserta, no meio dessa noite escura e fria. Quando eu acordei, senti meu corpo doendo, mal tive forças de me levantar. Olhei em volta, mas tudo que via era o reflexo da luz da lua no nada. Não sei meu nome, não sei onde moro, você foi a primeira pessoa que apareceu. A única memória que eu tenho em minha mente agora é do seu rosto. Tudo o que eu tenho é você. Por favor, não me deixe aqui sozinha.
Ela começou a chorar em silêncio. Ele passou a mão em seu rosto, olhou em seus olhos e disse:
- Eu sou um viajante, ando pelas estradas sem destino nem direção. Posso te levar para aonde você quiser ir.
- Então me leve com você, me ajude a descobrir quem eu sou, prometo que não vou lhe atrapalhar. - ela disse.
- Você pode vir comigo, não vou te deixar sozinha nesta estrada, mas é só isso que eu posso fazer. Só você pode lembrar quem realmente é.
Ela ficou em silêncio, olhou pela janela do carro para o céu estrelado. Seu olhar estava tão vazio e distante quanto àquela estrada. Miguel ligou o carro e seguiu em frente, agora não mais sozinho. Ligou o toca-fitas do seu Mustang novamente, na mesma música dos Beatles.
Começou a cantarolar, quando de repente uma voz o acompanhou:

"Nothing's gonna change my world, nothing's gonna change my world..."

Miguel olhou para a jovem com espanto, e pensou:
- "Ela não lembra o nome, não sabe como veio parar aqui, não lembra de nada a respeito de sua vida, mas sabe cantar esta canção. Como isso é possível?"
Ela, distraída, olhando para o deserto, com seus olhos semiabertos devido ao sono, continuou cantando, com sua voz suave:

"Nothing's gonna change my world, nothing's gonna change my world..."

O fim, ainda que desconhecido, não chegará antes do sol nascer...